Tem uma simbologia contundente o fato de parte da terra que
contaminou o campus da USP Leste ter saído do terreno do assim chamado Templo
de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus. Eu sei que o terreno da
universidade, interditado por mais de seis meses, tem outras fontes de
contaminação. O gás metano e substâncias cancerígenas encontrados são de várias
origens.
E também sei que não foram os neopentecostais que
contaminaram o terreno do “templo” no Brás – parte dele era do Lanifício
Paulista há décadas. Mas a auto importância do “bispo” Edir Macedo, que cultiva
agora uma barba de patriarca e recebe na inauguração a presidente Dilma, o vice
Temer, o governador Alckmin, o prefeito Haddad e o ex-Kassab, o ministro da
Casa Civil Aloizio Mercadante e o ministro do Supremo Ricardo Lewandowski,
entre outras autoridades subservientes, eleitoreiras e oportunistas, nos cobre
de vergonha alheia.
E tem toda uma coerência com uma longa história patriarcal
de abusos. Os primeiros a serem humilhados são o próprio Salomão, e Jesus
Cristo. Personagem do Velho Testamento, Salomão teria vivido no século 9º a.C.,
ou seja, é parte de uma estratégia de deixar o menino-propaganda Jesus de lado,
e garfar a tradição judaica (que está presente também nos adereços que aparecem
na foto acima, as menorás, ou candelabros de sete braços, como se vê na foto
acima).
A construção desse “templo” afirma algumas coisas. Entre
outras, que todo o polimento humanista que a tradição judaico-cristã recebeu no
Novo Testamento, e que de certa forma desembocou tardiamente na Teologia da
Libertação, não desautoriza noções antigas e mais brutais. A de que o Deus é
exigente e vingativo, sim. E que os “escolhidos” (não mais os judeus, mas os
neopentecostais) são sua milícia moral.
Acontece que o rei Salomão, que teria sido casado com 700
mulheres, e amante de mais 300 concubinas, é conhecido pelo Cântico dos
Cânticos, o livro mais sensual da Bíblia. Nesse livro bastante atípico, Deus é
citado só uma vez, e mesmo assim de forma indireta. Certamente “bispos” e
“pastores” devem se excitar com os relatos de tanta fartura – mas nem de longe
estão à altura de Salomão, cujos escritos se parecem mais com a literatura
pagã.
Naturalmente que os escritos de Salomão não tratam (só) da
putaria do poder, mas da relação com a natureza, que as mulheres simbolizam.
Diz ele: “Que deliciosas são suas carícias, minha irmã, minha mulher! Seu amor
é melhor do que o vinho, e a fragrância do seu perfume melhor do que a de todas
as especiarias/ Seus lábios gotejam favos de mel, minha mulher; mel e leite
estão debaixo da sua língua, e o cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do
Líbano/ Você é um jardim secreto, minha irmã, minha mulher, nascente fechada,
fonte selada/ De você brota um pomar de romãs com frutas ótimas, com flores de
hena e nardo/ Nardo e açafrão, cálamo e canela, com todas as madeiras
aromáticas, mirra e aloés e as mais finas especiarias/ Você é uma fonte dos
jardins, poço das águas vivas, que vêm do Líbano!”.
E em outro trecho a amada descreve o Rei como se fosse uma
encarnação furtiva de Pan, ou um sátiro: “O meu amado é como um gamo, ou um
cervo novo/ Vejam, lá está ele atrás do nosso muro, olhando pelas janelas,
espreitando pelas grades”. Tenho grande dificuldade em enxergar um pastor
evangélico nesse ser sedutor em meio ao bosque.
Voltando ao mundo contaminado. Numa investigação do
Ministério Público, surgiu a informação de onde veio parte da terra descartada
irregularmente no terreno onde seria levantado campus leste da universidade, em
janeiro de 2011. Como é área de proteção, a terra teria que ser analisada e receber
licença ambiental. Um engenheiro que avisou o diretor da escola da
irregularidade foi ameaçado anonimamente por telefone, em 2013.
Foi o dono da transportadora Ratão quem revelou que a terra
foi transportada do terreno do “templo”. Aliás construído fraudulentamente, com
base num parecer corrupto de reforma, concedido pelo escroque Husain Aref Saab,
da gangue que comandava a fiscalização de obras da prefeitura na gestão Kassab.
Que essa terra “sagrada” (not) tenha ido interditar uma universidade pública é
de uma suprema ironia. O conhecimento e o Estado Laico também estão entre os
humilhados.
Valter Pereira da Silva, o sr. Ratão dessa história, consta
ter declarado no inquérito: “Por determinação do governador Geraldo Alckmin, no
ano de 2007 o sr. Marcos Alano, responsável pela empresa de terraplanagem
Alano, retirou a calha do rio Tietê e todo o entulho oriundo da demolição do
Presídio do Carandiru e os jogou na área onde hoje está instalada a USP-Zona
Leste (...) Como o declarante estava fazendo serviço de terraplanagem no Templo
do Rei Salomão, do bispo Edir Macedo, precisava de um lugar para despejar terra
decorrente da escavação para a construção do referido Templo”.
Esse sim é o Deus que eu respeito, o supremo roteirista, que
escolhe um nome maravilhoso desses, RATÃO, para compor o roteiro. É dessa
“relação com a natureza” que se trata: uma sociedade de patriarcalismo
exaltado, em que acumulação e o poder linear substituem qualquer sensibilidade
no trato com o mundo material, o mundo natural, dos ciclos e da conservação.
Foi o homem, não a natureza, que inventou os esgotos
habitados pelos ratões. A natureza é limpa, mesmo quando é “suja”. São os
dejetos e resíduos humanos acumulados que poluem, entopem e destroem nosso
planeta. O gosto pelo dinheiro não é “materialista”; pelo contrário. Enxergar
valor num pedaço de papel é idealismo puro. E esse papel não surgiu para
humilhar.
É desse curtocircuito que se gera quando se prega que o
“espírito” (o masculino, o formal, o regrado) é superior à “matéria” (o
feminino, o intuitivo, o natural) que as religiões monoteístas se alimentam. O
poder pessoal é deslocado para uma fonte externa, pretensamente superior e
necessariamente autoritária. A busca humana de uma compreensão ética da vida é
terceirizada. O dinheiro se torna superior ao que ele mesmo compra.
Ao contrário de Salomão, as barbas de Edir Macedo simbolizam
a autoridade pela autoridade, sem sabedoria, sem substância, sem clemência, sem
amor de qualquer tipo, a não ser por ela mesma. É o poder do poder, o dinheiro
do dinheiro, o comando do comando, o abuso do abuso. O yang do yang: um mundo
que começa e termina no homem e em sua vertigem de poder, sem mulher e sem
entorno.
A cabala judaica, que os neopentecostais tentam emular
magicamente, trata do equilíbrio entre poder e responsabilidade. O povo
“escolhido” não significa os apadrinhados de um deus nepotista, que distribui
cargos, benesses e prestígio a quem puxa seu saco. Pelo contrário, significa a
presença de Deus na sua ética, nos seus hábitos, de tal forma que a riqueza, a
saúde e a justiça se distribuam entre todos os seus filhos, administradas por
líderes sábios. (Não que os judeus cabalistas tenham matado a charada, como
vemos na Palestina.)
Ver nossas “lideranças” políticas todas sob as barbas de
Edir Macedo, senhor de ratões e esgotos, de contaminações e interdições, não
tem como nos deixar muito otimistas. É esse espelho distorcido que nossos
homens e mulheres públicos procuram: o espelho de Edir e seu “poder”. Inclusive
Alckmin, Kassab e agora Haddad, que se põe diretamente na linha de tiro desse
escândalo.
Mas que faz todo o
sentido, lá isso faz. O cristão-black-block que pixou a parede do “templo”
antes da inauguração com um “Atos 17:24” (a passagem bíblica “Deus não habita
em templos feitos pelas mãos de homens”) me representa. Porque os humilhados
por essa inauguração somos todos nós.
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